EU, O FANTASMA QUE VOS FALA

Abiniel João Nascimento

Abiniel João Nascimento (They/Them) is a visual artist, researcher, bachelor in Museology. Creator of Ka’a Îuru – School of Memory, member of the Black and Indigenous Art Collective – CARNI and DesAyiê research group. They acts as curator of Performance art and indigenous culture at the Periáktos Institute and is co-author of the book “What if? Archives, photography and fables” (Org.: Marina Feldhues). Them work includes texts, video, performances, workshops and curatorship.

Diante de mim a imagem reflete o desejo.
Navios, navios, navios.
Diante de mim a imagem.
Corpo criado.
Bicho, gente, gente-bicho, bicho-gente.
Navios, navios, navios.
O mar parecia alvoroçado às três da tarde de uma quarta-feira.
O espelho como segundo sol aporta no mar, a imagem criada pela luz do primeiro sol que pousava sobre nossos ombros.
O espelho mítico.
A falsa moeda, o desejo histórico, a perdição de narciso.
Criada a imagem sob a jura de um espelho tendencioso.
Máquina do escárnio colonial.
Nota: quebrar o espelho sempre ao amanhecer.
Oblíquo vislumbre: a língua, a linguagem, a escrita, as gramáticas, os documentos, os arquivos, a denominação, a dominação.
Muda a palavra, 
Muda o significado, 
a imagem continua a mesma?
(   ) Sim      (   ) Não
Muda a palavra,
Muda o significado, 
Muda a imagem,
O sentido continua o mesmo?
(   ) Sim      (   ) Não
Muda a palavra,
Muda o significado,
Muda a imagem,
Muda o sentido,
A experiência continua a mesma?
(   ) Sim      (   ) Não
Denominação, dominação, denominação, dominação, denominação, dominação.
Cisma iminente na criação do real.
Real como um corpo amarrado à boca de um canhão.
Expectativa de pureza, libido de extinção.
Extinção pela palavra.
O rastro fantasmagórico de corpos extintos do real espectro do espelho.
Extinção pela palavra.
Como sobrevive um corpo-além-imagem numa configuração de historiografia linear-imaginativa?
Habitando as liminaridades entre existência e extinção, morte e vida, presença e ausência, linearidade e espiralidade, humanidade, não-humanidade, pouca-humanidade, quase humanidade.
Diante do espelho, mais um dia, fui me tornando fantasma habitando as fissuras do agora.
 
EU SOU UM FANTASMA E VOU ASSUSTAR VOCÊ!
I’M A GHOST AND I WILL SCARE YOU!
¡SOY UN FANTASMA Y TE VOY A ASUSTAR!

Existência, extinção.
Existência, extinção.
Extinçência, existão.
Escrevo como quem conjura um tempo de destruição do mundo real.
Ficcionalizando a minha existência perante a quebra de mais um espelho que se reconstrói na constância da linearidade, na constância da palavra, da denominação.
Amolecer nossa língua, desmunhecar nosso olhar.
Tensionando um delírio de materialidade perante as confluências entre o intangível, o invisível e o inaudível: onde tudo acontece e nada acontece.
 
 
Desde que iniciei as pesquisas acerca da racialidade como configuração colonial e seus aspectos limitantes – no que condiz à criação da categoria de ‘índio’ e suas zonas limítrofes que compreendem aspectos fenotípicos designados a partir do desejo de de[no]minação – tenho pensado no paralelo existência-extinção como categorias discursivas mediadas pelo Estado. Assim com as categorias de pureza e mestiçagem, memória e esquecimento, as categorias de existência e extinção se configuram através da força de sua dualidade, retroalimentando-as e sendo retroalimentadas. Nesse sentido, compreendendo as extremidades dessa idealização linear enquanto pontos imóveis, evidencio então, os corpos que habitam a(s) liminaridade(s) existente(s) entre esses pontos. Singular ou plural, porque apesar de se estabelecer em linearidade, a pluralidade das existências extrapola essa relação intrínseca à vida e a morte. 
Pensando essa relação liminar entre existência e extinção enquanto trajeto encarado de frente desde uma historiografia oficial, envolvo meus pensamentos na presentificação do eu-coletivo enquanto uma fantasmagoria. 
Levantando documentos, narrativas, artigos, teses, dissertações, cartografias, dentre outros materiais, me deparo com a seguinte questão: o povo indígena o qual habitava meu território foi extinto. O povo indígena o qual habitava meu território foi extinto? Relutei na esperança de existir, habitar o real, tocar meus pés no chão, perante a extinção semântica que naquele momento me cometia. Eu falava: existo! Sou de carne e osso! Sei minha história! E do outro lado, assustados, gritavam: você não existe! Você não existe! Você não existe! É pura ilusão! 
Fui me tornando fantasma, habitando as fissuras do agora. Eu, meus pais, minhas avós, e todos aqueles que vieram depois do “laço”,  ou dos navios aportando no mar, ou dos dados bibliográficos e cartográficos. Fantasmas que assombram não apenas a si mesmos ao se olhar no espelho e reconhecer a mais pura materialidade de sua carne presentificada no território que sempre habitou.
 
Abiniel João Nascimento (Pernambuco, Brasil) é artista visual, pesquisador, bacharel em Museologia (UFPE), com formação em Fotografia Expandida (EAV Parque Lage – RJ). Criou a Ka’a Îuru – Escola da Memória, é membro do Coletivo de Arte Negra e Indígena – CARNI e desenvolve o Ciclo de Estudos Críticos: Indigeneidade, mestiçagem e a maquinaria da ausência. É coautor do livro “E se? Arquivos, fotografias e fabulações” (Org.: Marina Feldhues). 
 
 
Esse texto foi originalmente concebido para o Ciclo de Estudos Críticos: Indigeneidade, mestiçagem e a maquinaria da ausência, 1ª Edição, 2023.
 
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